Certos psiquiatras encontraram uma relação entre neurose e
histeria e religião, que foi confirmada em algumas amostras num contexto de investigação
(1). Estudos (*) apontam para que certas crenças e práticas religiosas de
alguns pacientes psiquiátricos tenham origem numa predisposição patológica
(ex.: pacientes que acreditam estarem possuídos por demónios e que deus fala
com eles, etc.) e para que o contacto com a religião e experiências religiosas
possam despoletar esses episódios psicóticos, mas outros apontam para que a
religião possa servir para os aliviar do stress da doença e mesmo do stress de
situações menos agradáveis do dia-a-dia (1,2) (ex.: morte de parentes). É claro
que eu poderia propor que, por exemplo para lidar com a morte de um familiar,
pode-se simplesmente manter a sua memória viva, até mesmo através de gerações
futuras (em vez de uma “alma imortal”, por exemplo). As crenças religiosas não
são necessárias para lidar com esse tipo de situações. Há alternativas,
provavelmente melhores, uma vez que, segundo o psiquiatra canadiano Wendall Watters, «Tem
sido demonstrado que a doutrina cristã e liturgia desencorajam o
desenvolvimento de estratégias maduras de “coping” e das aptidões relativas às
relações interpessoais que permitem lidar de uma forma adaptativa com a
ansiedade causada pelo stress.» (2)
No ramo da psiquiatria há poucos profissionais que defendam
opções de tratamento relacionadas com a religião. Essas pérolas raras defendem
que se deve até rezar com os pacientes e apelam à intervenção de clérigos quando
o psiquiatra utilizar as crenças religiosas do paciente no tratamento – mas o
que se está à espera quando por baixo das afiliações do autor do artigo se lê
algo como isto: “Center for Spirituality,
Theology and Health, Duke University Medical Center, Durham, North Carolina,
USA.” É claro que para quem escreveu isto, o maior interesse não é a ciência
nem sequer o bem-estar dos pacientes ou as boas práticas num contexto clínico.
É propaganda religiosa pura e simples – marketing religioso (1). Não sou contra
respeitar as crenças ou antecedentes religiosos do paciente (o que se quer é
evitar o conflito entre o psiquiatra ou psicólogo e o paciente e não
fomentá-lo, de modo a que se evite sobrecarregar o doente com stress e não se
desvie o profissional dos seus objectivos), nem a favor de não as ter em conta,
para o bem e para o mal – e nenhum profissional de saúde (mental ou não) que se
preze deve ser contra isso (pelo menos metade numa pesquisa não são (2)). Mas
uma coisa é respeitar e ter em conta, outra coisa é incluir no tratamento a
promoção/apoio de práticas e crenças religiosas dos pacientes como estratégia
de “coping” – o psiquiatra deve manter uma posição neutra e promover
estratégias alternativas sem desrespeitar as crenças do paciente, podendo ou
não contradizer essas crenças conforme apropriado num contexto terapêutico ou
não, mesmo que possa ajudar a lidar com a ansiedade em certos casos, até porque
é sabido que podem despoletar episódios psicóticos e não se pode ter a certeza
na maioria dos casos de que o paciente não tem tendência para esses episódios,
podem ter uma base patológica e o psiquiatra não deve ajudar a perpetuar
ilusões. Não se devem utilizar essas práticas (a não ser talvez em último dos
últimos casos), pois podem ser uma “falsa ajuda” do que uma ajuda (ver citação
destacada) e não há estudos que apoiem a ideia de que o “tratamento religioso”
é melhor do que o tratamento “não religioso”. Não sou psicóloga nem psiquiatra
(tenho apenas 4 créditos de psicologia em todo o curso de ACSP e frequentei
algumas aulas de psicologia do desenvolvimento extra), mas não é preciso muito mais
que cultura geral básica, consulta das fontes certas e inteligência para
ver as possíveis implicações nefastas na saúde do individuo decorrentes dessa
prática, além de que seria deseducar a população sem qualquer benefício
adicional garantido, uma vez que as crenças religiosas não são confirmadas por
qualquer tipo de evidências (pelo contrário) e são tidas como superstição pela
maioria dos cientistas (e até psiquiatras e psicólogos).
Relativamente ao assunto da
relação entre depressão e religião, há poucos estudos e os resultados pendem
para ambos os lados (2).
Uma ocorrência comum é a discriminação de doentes
mentais por parte das comunidades religiosas – e uma das causas pode ser a
montanha de noções erradas que a própria religião leva a que se instale nessas
populações. Outra é o facto das pessoas darem concelhos contrários aos dos
profissionais com base na religião e escolherem erradamente não se tratarem com
base em crenças religiosas (3). Por último mas não menos importante, mesmo que o balanço do "tratamento religioso" e da religião em si fosse positivo em termos de saúde mental, isso não faz das crenças religiosas dos pacientes factos nem teorias cientificamente aceitáveis.
Notas:
*Exemplos:
Siddle, Ronald; Haddock, Gillian, Tarrier,
Nicholas, Faragher, E. Brian (1 March 2002). "Religious delusions in patients admitted to hospital with
schizophrenia". Social Psychiatry and Psychiatric Epidemiology 37 (3): 130–138. doi:10.1007/s001270200005.PMID 11990010.
Mohr,
Sylvia; Borras, Laurence, Betrisey, Carine, Pierre-Yves, Brandt, Gilliéron,
Christiane, Huguelet, Philippe (1 June 2010). "Delusions with Religious Content
in Patients with Psychosis: How They Interact with Spiritual Coping". Psychiatry:
Interpersonal and Biological Processes 73 (2):
158–172. doi:10.1521/psyc.2010.73.2.158.
Suhail, Kausar;
Ghauri, Shabnam (1 April 2010). "Phenomenology of delusions and
hallucinations in schizophrenia by religious convictions". Mental Health, Religion & Culture 13 (3): 245–259. doi:10.1080/13674670903313722.
Referências:
1. “Religion and mental health:
what should psychiatrists do?”
Harold G. Koenig, Professor of Psychiatry and behavioral Sciences,
Associate Professor of Medicine, Psychiatric Bulletin (2008)32: 201-203doi:10.1192/pb.bp.108.019430 (http://pb.rcpsych.org/content/32/6/201.full)
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