terça-feira, 2 de setembro de 2014

Transtornos de personalidade e o seu valor adaptativo

À primeira vista, qualquer pessoa com um transtorno de personalidade parece estar em desvantagem, cada qual à sua maneira. Como exemplo, um paciente com transtorno borderline é muito temperamental, sente muito fortemente as emoções (mais do que o esperado de acordo com a situação), tem problemas de controlo de raiva, irritabilidade e impulso, necessita de estimulação - à semelhança do que acontece em pacientes com psicopatia secundária (o tipo mais neurótico) (1), por exemplo. A mulher borderline é a típica cabra raivosa, com ataques psicopáticos (apesar do nível de empatia emocional variar, podendo encontrar-se diminuído ou não - e muitas vezes não é "utilizada" no dia a dia devido ao turbilhão emocional do próprio - no que se relaciona com sentimentos de compaixão e pena - sim, sentir pena está relacionado com a reacção empática, mas é o nível menos exigente, devido ao distanciamento - e poderem atingir níveis mais altos de desconforto emocional face ao sofrimento de outros em relação aos indivíduos usados para controlo (2)), por vezes com sentimentos de omnipotência, depressiva ou maníaca, a pular de relação amorosa em relação amorosa, outras vezes apenas de relação sexual em relação sexual (3, 4). O que é que isto tem de vantajoso/adaptativo? À primeira vista, nada. É verdade que não comecei por um dos melhores transtornos neste aspecto (pelo menos a meu ver). Mas é de notar que mesmo nestes pacientes, em bastantes casos as piores partes não levam a melhor - tornam-se bem sucedidos, e quem sofre de transtorno borderline "construiu" várias defesas adaptativas, que o tornam mais resistentes à adversidade - por exemplo, defesas narcisistas e desvalorização de pessoas em relação às quais existe uma ambiguidade de sentimentos (4) - e assim, mais provavelmente do que se deixassem "ir abaixo" por completo com problemas de auto-estima e ansiedade (em comparação com pessoas com transtorno de personalidade depressivo, por exemplo), eles atingem a idade adulta (de reprodução) e vivem mais tempo. Sim, certos transtornos de personalidade trazem vantagem aos indivíduos em comparação com outros transtornos de personalidade, e alguns até suplantam os "normais" ou neurotípicos. O exemplo que salta mais à vista é o psicopata primário (embora o nível do valor adaptativo se estenda também ao narcisista* anti-social): não sente remorsos, não estabelecem relações afectivas, ou seja, relacionam-se apenas a um nível superficial, geralmente sentem pouca ou nenhuma empatia pelos outros (não se sentem mal como eles, nem por eles, nem compaixão), têm défice emocional. É também promíscuo, narcisista, egocêntrico, impulsivo, manipulador, mentiroso patológico, ilude os outros com o seu charme superficial, tem dificuldade em aprender com os erros, pode ser caracterizado como "amoral" e sofre de tédio, necessitando de estimulação. Tolera mal a frustração, ficando enraivecido e é vingativo. Existe um teste (profissional) de psicopatia e transtorno de personalidade anti-social (do qual a psicopatia é considerado um subtipo), em que estas características são classificadas pelo próprio paciente (acompanhados por um profissional) com  os números 0 (não se aplica), 2 (aplica-se) e 1 (aplica-se menos relativamente a outras características) (5). Se a isto associarmos uma inteligência pelo menos um pouco acima da média, temos alguém que tem facilidade em tomar decisões controversas (sobretudo moralmente controversas), tem facilidade (sobretudo moral, também) em ludibriar outros para atingir os seus objectivos, auto-estima elevada, que provavelmente valorizam a imagem e a posição social (que depende bastante da profissão), e tendo inteligência suficiente, acabam por ser pelo menos razoavelmente realizados. Quando o público em geral (leigo) pensa em psicopatia, tende muito provavelmente a visualizar um assassino, normalmente em série, ou pelo menos um criminoso irremediável, que acaba morto ou na prisão durante imenso tempo, devido à sua representação na televisão, no cinema e até na literatura. Mas, dependendo das capacidades intelectuais de cada um, os psicopatas podem ser médicos, advogados, banqueiros, economistas, empresários, ou ter um emprego que, pelo menos, os sustente. Em termos evolutivos, um psicopata (sobretudo o psicopata do sexo masculino) tem boas probabilidades de se reproduzir (é promíscuo, mas pouco afectivo, pode servir-se do seu charme superficial, facilidade em mentir, enganar e manipular para arranjar parceiras) e tem mais probabilidade de abdicar de participar na educação dos filhos, deixando-os com a parceira, logo menos custos para o próprio. Podem muitas vezes chegar ao topo (ex.: numa empresa), bajulando, manipulando ("enrolando"), mentindo, e até aumentando o desempenho, quando disso depende algo importante, como uma promoção. O psicopata secundário é mais medricas, mais neurótico, menos dominante socialmente e tem mais características do transtorno borderline do que os psicopatas primários. Mas tal como estes é promíscuo, pouco afectivo, pouco empático, portanto não tem problemas (ou tem menos) em mentir, enganar, manipular ou tomar decisões moralmente controversas e não sofre com problemas de auto-estima. É por vezes designado por sociopata, que é um termo antigo e por vezes também usado para descrever outros pacientes anti-sociais (1, 6) (os que sofreram acidentes que provocaram o transtorno, ou indivíduos com um sentido de "bem" e "mal" diferente do que era de esperar dado o contexto cultural em que foi criado, tendo provavelmente algo afectado no circuito empático (6)), o que só vem criar confusão. Será possível que algum dia a população humana seja dominada por psicopatas (as evidências sugerem que é hereditário, pelo menos no caso da psicopatia primária)? A (hipotética) pressão selectiva não me parece suficientemente forte. 

Actualização: Como já anteriormente referi, mais do que um transtorno de personalidade pode coexistir num paciente - Uma conjugação possível é borderline + psicopata, mais sensível, emocional e vulnerável do que o psicopata "puro" (e provavelmente com problemas de abandono - namorados e namoradas, cuidado), mas mesmo assim com muitas das características, incluindo empatia diminuída, falta de remorsos e falta de escrúpulos, que dão potencial para o sucesso ao psicopata.*** 

Referências: 

1. "DOES SECONDARY PSYCHOPATHY EXIST? EXPLORING CONCEPTUALISATIONS OF PSYCHOPATHY AND EVIDENCE FOR THE EXISTENCE OF A SECONDARY VARIANT OF PSYCHOPATHY", Christopher Thomas Gowlett - Internet Journal of Criminology © 2014, ISSN 2045 6743 (Online) (disponível em: 
http://www.internetjournalofcriminology.com/Gowlett_Does_Secondary_Psychopathy_Exist_IJC_Jan_2014.pdf
2. "Social cognition in borderline personality disorder", Stefan RoepkeAline VaterSandra PreißlerHauke R. HeekerenIsabel Dziobek, Front Neurosci. 2012; 6: 195. Published online Jan 14,2013. doi:10.3389/fnins.2012.00195, PMCID: PMC3543980 (disponível em: http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC3543980/
3. "Borderline personality Test" (disponível em: http://psychcentral.com/quizzes/borderline.htm)**    
4. "BEYOND SPLITTING: OBSERVER-RATED DEFENSE MECHANISMS IN BORDERLINE
PERSONALITY DISORDER", J. Christopher Perry et al, Psychoanalytic Psychology © 2012 American Psychological Association, 2013, Vol. 30, No. 1, 3–15 0736-9735/13/$12.00 DOI: 10.1037/a0029463 (disponível em: http://www.apa.org/pubs/journals/features/pap-a0029463.pdf)  
5. "Hare Psychopathy Checklist" (disponível aqui: http://www.minddisorders.com/knowledge/Hare_Psychopathy_Checklist.html)/ "An Introduction to the Psychopathy Checklist-Revised (PCL-R)", J. Scarlet (disponível em: http://psychopathyinfo.wordpress.com/2011/12/31/an-introduction-to-the-psychopathy-checklist-revised-pcl-r/)
6. Pemment, J., Psychopathy versus sociopathy: Why the distinction has become crucial, Aggression and Violent Behavior
(2013), http://dx.doi.org/10.1016/j.avb.2013.07.001 (disponível em: http://www.psychologytoday.com/files/attachments/112693/psychopathy-versus-sociopathy.pdf

Notas:

*Falta de empatia (como mencionado num texto anterior) e remorso, entre outras são também características do transtorno de personalidade narcisista - o máximo que conseguem sentir, de acordo com profissionais que trabalharam com esses pacientes, é um ligeiro desconforto porque têm motivos egoístas para querer que fique tudo "bem" - a aparência de perfeição está ameaçada - mas não pelos sentimentos da outra pessoa, pelo que podem explicar-se (muitas vezes evitando pedir desculpa) ou tentar compensar a pessoa e reparar superficialmente a relação, é raro assumirem a culpa por completo e tendem a racionalizar (ver testemunho aqui: http://thenarcissisticlife.com/the-narcissist-and-apology/)

Conselhos para quem lida (ou pelo menos está convencido de que lida) com um parceiro, amigo ou familiar com um destes transtornos de personalidade: Se é um psicopata (primário ou secundário), fujam, não tenham pena e muito menos compaixão deles – eles jogam com as vossas emoções e empatia, por vezes só para vos poderem arreliar durante mais um bocadinho depois disso. Para eles é um jogo – até a vossa relação pode ser um jogo, cheio de enganos e mentiras. Se é borderline, convençam-no (manipulem-no - lol) a ir ao psicólogo, psiquiatra ou ambos, se tiverem intimidade suficiente - e só nessa situação é que interessa. Se não têm essa intimidade, afastarem-se é uma opção. Se é anti-social ("sociopata"), provavelmente é criminoso ou tem tendências criminosas. Fujam. Quanto aos narcisistas, existem subtipos mais vulneráveis e menos vulneráveis – até com tendências psicopáticas. Dos primeiros, afastem-se sem conflito, se passarem na rua podem retribuir um olá. Se forem conjugues, podem tentar a terapia conjunta – ou o divórcio. Dos últimos, fujam. Eu gosto de pensar nos transtornos de personalidade da seguinte forma: o psicopata primário é o maquiavélico, mentiroso, pouco emocional, pouco empático, sem remorsos, o psicopata secundário é o irmão “rabugento” e medricas, o anti-social é o primo delinquente, o narcisista é o primo convencido, o borderline o primo sensível, e o histriónico é o dramático e superficial, mas mais empático e afastado (são todos transtornos do cluster B). Gosto da analogia dos primos porque todos têm algo em comum, e também diferenças que são decisivas para o diagnóstico.       

Por último, deixo um conselho aos fãs do Sherlock Holms (BBC): não se deixem manipular pelo malandro, a dar um tom mais "soft" e por isso mais "aceitável" à sua condição de psicopata (ou pelo menos, tendências psicopáticas), o que pode também ser interpretado como arrogância, e por isso intimidativo, em certos contextos. “High functioning sociopath” é uma designação com pouco préstimo em termos de diferenciação - a parte do "sociopath", pois é usado também para descrever dois outros grupos de indivíduos anti-sociais, e não só o psicopata secundário. Apesar do “sociopata” ser visto pelo público (e uma pesquisa rápida online evidencia-o) como um paciente com uma forma menos grave de psicopatia, nenhum dos grupos ou o subtipo de psicopatia que pode designar se traduz num impacto social menos grave do que o subtipo primário – até podem ser piores. Não há razão para "sociopata" ser mais aceitável do que "psicopata", pelo menos em termos de comportamento e impacto. "High functioning", se quiser apenas dizer inteligente e por isso bem sucedido, está obviamente correcto e diferencia-o do tipo de caso mais exposto ao público, portanto seria uma observação pertinente. Nem todos os psicopatas são bem sucedidos, alguns acabam presos ou mortos pela polícia ou sistema de justiça. Uma interpretação alternativa é que ele se apresenta como um "sociopata" (ou um psicopata secundário, neste caso) e reage forçadamente como um por achar que isso o livra de qualquer fraqueza (ou pseudo-fraqueza) que ele tenha. 



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