À
primeira vista, qualquer pessoa com um transtorno de personalidade parece estar
em desvantagem, cada qual à sua maneira. Como exemplo, um paciente com
transtorno borderline é muito temperamental, sente muito fortemente as emoções
(mais do que o esperado de acordo com a situação), tem problemas de controlo de
raiva, irritabilidade e impulso, necessita de estimulação - à semelhança do que
acontece em pacientes com psicopatia secundária (o tipo mais neurótico) (1),
por exemplo. A mulher borderline é a típica cabra raivosa, com ataques
psicopáticos (apesar do nível de empatia emocional variar, podendo encontrar-se
diminuído ou não - e muitas vezes não é "utilizada" no dia a dia devido
ao turbilhão emocional do próprio - no que se relaciona com sentimentos de
compaixão e pena - sim, sentir pena está relacionado com a reacção empática,
mas é o nível menos exigente, devido ao distanciamento - e poderem atingir
níveis mais altos de desconforto emocional face ao sofrimento de outros em
relação aos indivíduos usados para controlo (2)), por vezes com sentimentos de
omnipotência, depressiva ou maníaca, a pular de relação amorosa em relação
amorosa, outras vezes apenas de relação sexual em relação sexual (3, 4). O que
é que isto tem de vantajoso/adaptativo? À primeira vista, nada. É verdade que
não comecei por um dos melhores transtornos neste aspecto (pelo menos a meu
ver). Mas é de notar que mesmo nestes pacientes, em bastantes casos as piores
partes não levam a melhor - tornam-se bem sucedidos, e quem sofre de transtorno
borderline "construiu" várias defesas adaptativas, que o tornam mais
resistentes à adversidade - por exemplo, defesas narcisistas e desvalorização
de pessoas em relação às quais existe uma ambiguidade de sentimentos (4) - e
assim, mais provavelmente do que se deixassem "ir abaixo" por
completo com problemas de auto-estima e ansiedade (em comparação com pessoas
com transtorno de personalidade depressivo, por exemplo), eles atingem a idade
adulta (de reprodução) e vivem mais tempo. Sim, certos transtornos de personalidade trazem
vantagem aos indivíduos em comparação com outros transtornos de personalidade,
e alguns até suplantam os "normais" ou neurotípicos. O exemplo que
salta mais à vista é o psicopata primário (embora o nível do valor adaptativo
se estenda também ao narcisista* anti-social): não sente remorsos, não
estabelecem relações afectivas, ou seja, relacionam-se apenas a um nível
superficial, geralmente sentem pouca ou nenhuma empatia pelos outros (não se
sentem mal como eles, nem por eles, nem compaixão), têm défice emocional. É
também promíscuo, narcisista, egocêntrico, impulsivo, manipulador, mentiroso
patológico, ilude os outros com o seu charme superficial, tem dificuldade em
aprender com os erros, pode ser caracterizado como "amoral" e sofre
de tédio, necessitando de estimulação. Tolera mal a frustração, ficando
enraivecido e é vingativo. Existe um teste (profissional) de psicopatia e
transtorno de personalidade anti-social (do qual a psicopatia é considerado um
subtipo), em que estas características são classificadas pelo próprio paciente
(acompanhados por um profissional) com os números 0 (não se aplica), 2
(aplica-se) e 1 (aplica-se menos relativamente a outras características) (5).
Se a isto associarmos uma inteligência pelo menos um pouco acima da média,
temos alguém que tem facilidade em tomar decisões controversas (sobretudo
moralmente controversas), tem facilidade (sobretudo moral, também) em ludibriar
outros para atingir os seus objectivos, auto-estima elevada, que provavelmente
valorizam a imagem e a posição social (que depende bastante da profissão), e
tendo inteligência suficiente, acabam por ser pelo menos razoavelmente
realizados. Quando o público em geral (leigo) pensa em psicopatia, tende muito
provavelmente a visualizar um assassino, normalmente em série, ou pelo menos um
criminoso irremediável, que acaba morto ou na prisão durante imenso tempo,
devido à sua representação na televisão, no cinema e até na literatura. Mas,
dependendo das capacidades intelectuais de cada um, os psicopatas podem ser
médicos, advogados, banqueiros, economistas, empresários, ou ter um emprego
que, pelo menos, os sustente. Em termos evolutivos, um psicopata (sobretudo o
psicopata do sexo masculino) tem boas probabilidades de se reproduzir (é
promíscuo, mas pouco afectivo, pode servir-se do seu charme superficial,
facilidade em mentir, enganar e manipular para arranjar parceiras) e tem mais
probabilidade de abdicar de participar na educação dos filhos, deixando-os com a
parceira, logo menos custos para o próprio. Podem muitas vezes chegar ao topo
(ex.: numa empresa), bajulando, manipulando ("enrolando"), mentindo,
e até aumentando o desempenho, quando disso depende algo importante, como uma
promoção. O psicopata secundário é mais medricas, mais neurótico, menos
dominante socialmente e tem mais características do transtorno borderline do
que os psicopatas primários. Mas
tal como estes é promíscuo, pouco afectivo, pouco empático, portanto não tem
problemas (ou tem menos) em mentir, enganar, manipular ou tomar decisões
moralmente controversas e não sofre com problemas de auto-estima. É por
vezes designado por sociopata, que é um termo antigo e por vezes também usado
para descrever outros pacientes anti-sociais (1, 6) (os que sofreram acidentes
que provocaram o transtorno, ou indivíduos com um sentido de "bem" e
"mal" diferente do que era de esperar dado o contexto cultural em que
foi criado, tendo provavelmente algo afectado no circuito empático (6)), o
que só vem criar confusão. Será possível que algum dia a população
humana seja dominada por psicopatas (as evidências sugerem que é hereditário,
pelo menos no caso da psicopatia primária)? A (hipotética) pressão selectiva
não me parece suficientemente forte.
Actualização: Como já anteriormente referi, mais do que um transtorno de personalidade pode coexistir num paciente - Uma conjugação possível é borderline + psicopata, mais sensível, emocional e vulnerável do que o psicopata "puro" (e provavelmente com problemas de abandono - namorados e namoradas, cuidado), mas mesmo assim com muitas das características, incluindo empatia diminuída, falta de remorsos e falta de escrúpulos, que dão potencial para o sucesso ao psicopata.***
Actualização: Como já anteriormente referi, mais do que um transtorno de personalidade pode coexistir num paciente - Uma conjugação possível é borderline + psicopata, mais sensível, emocional e vulnerável do que o psicopata "puro" (e provavelmente com problemas de abandono - namorados e namoradas, cuidado), mas mesmo assim com muitas das características, incluindo empatia diminuída, falta de remorsos e falta de escrúpulos, que dão potencial para o sucesso ao psicopata.***
Referências:
1. "DOES SECONDARY PSYCHOPATHY EXIST? EXPLORING CONCEPTUALISATIONS OF PSYCHOPATHY AND EVIDENCE FOR THE EXISTENCE OF A SECONDARY VARIANT OF PSYCHOPATHY", Christopher Thomas Gowlett - Internet Journal of Criminology © 2014, ISSN 2045 6743 (Online) (disponível em: http://www.internetjournalofcriminology.com/Gowlett_Does_Secondary_Psychopathy_Exist_IJC_Jan_2014.pdf)
2. "Social cognition in borderline personality
disorder", Stefan Roepke, Aline Vater, Sandra Preißler, Hauke R. Heekeren, Isabel Dziobek, Front Neurosci.
2012; 6: 195. Published online Jan 14,2013. doi:10.3389/fnins.2012.00195, PMCID: PMC3543980 (disponível
em: http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC3543980/)
3. "Borderline personality Test" (disponível
em: http://psychcentral.com/quizzes/borderline.htm)**
4. "BEYOND SPLITTING: OBSERVER-RATED DEFENSE
MECHANISMS IN BORDERLINE
PERSONALITY DISORDER", J. Christopher Perry et
al, Psychoanalytic Psychology © 2012 American Psychological Association, 2013,
Vol. 30, No. 1, 3–15 0736-9735/13/$12.00 DOI: 10.1037/a0029463 (disponível
em: http://www.apa.org/pubs/journals/features/pap-a0029463.pdf)
5. "Hare Psychopathy Checklist" (disponível
aqui: http://www.minddisorders.com/knowledge/Hare_Psychopathy_Checklist.html)/ "An Introduction to the Psychopathy Checklist-Revised (PCL-R)", J. Scarlet (disponível em: http://psychopathyinfo.wordpress.com/2011/12/31/an-introduction-to-the-psychopathy-checklist-revised-pcl-r/)
6. Pemment, J., Psychopathy versus sociopathy:
Why the distinction has become crucial, Aggression and Violent Behavior
(2013),
http://dx.doi.org/10.1016/j.avb.2013.07.001 (disponível em: http://www.psychologytoday.com/files/attachments/112693/psychopathy-versus-sociopathy.pdf)
Notas:
*Falta de
empatia (como mencionado num texto anterior) e remorso, entre outras são também
características do transtorno de personalidade narcisista - o máximo que
conseguem sentir, de acordo com profissionais que trabalharam com esses
pacientes, é um ligeiro desconforto porque têm motivos egoístas para querer que
fique tudo "bem" - a aparência de perfeição está ameaçada - mas não
pelos sentimentos da outra pessoa, pelo que podem explicar-se (muitas vezes
evitando pedir desculpa) ou tentar compensar a pessoa e
reparar superficialmente a relação, é raro assumirem a culpa por
completo e tendem a racionalizar (ver testemunho aqui: http://thenarcissisticlife.com/the-narcissist-and-apology/)
**Elaborado por um especialista (http://psychcentral.com/about/how-we-develop-our-tests-quizzes/)
***Ver testemunho de um paciente, como exemplo: http://www.experienceproject.com/stories/Have-Borderline-Personality-Disorder/461161
Conselhos
para quem lida (ou pelo menos está convencido de que lida) com um parceiro,
amigo ou familiar com um destes transtornos de personalidade: Se é um psicopata (primário ou secundário), fujam, não
tenham pena e muito menos compaixão deles – eles jogam com as vossas emoções e
empatia, por vezes só para vos poderem arreliar durante mais um bocadinho
depois disso. Para eles é um jogo – até a vossa relação pode ser um jogo, cheio
de enganos e mentiras. Se é borderline, convençam-no (manipulem-no - lol) a ir
ao psicólogo, psiquiatra ou ambos, se tiverem intimidade suficiente - e só
nessa situação é que interessa. Se não têm essa intimidade, afastarem-se é uma
opção. Se é anti-social ("sociopata"), provavelmente é criminoso ou
tem tendências criminosas. Fujam. Quanto aos narcisistas, existem subtipos mais
vulneráveis e menos vulneráveis – até com tendências psicopáticas. Dos
primeiros, afastem-se sem conflito, se passarem na rua podem retribuir um olá.
Se forem conjugues, podem tentar a terapia conjunta – ou o divórcio. Dos
últimos, fujam. Eu gosto de pensar nos transtornos de personalidade da seguinte
forma: o psicopata primário é o maquiavélico, mentiroso, pouco emocional, pouco
empático, sem remorsos, o psicopata secundário é o irmão “rabugento” e
medricas, o anti-social é o primo delinquente, o narcisista é o primo
convencido, o borderline o primo sensível, e o histriónico é o dramático e
superficial, mas mais empático e afastado (são todos transtornos do
cluster B). Gosto da analogia dos primos porque todos têm algo em comum, e
também diferenças que são decisivas para o diagnóstico.
Por
último, deixo um conselho aos fãs do Sherlock Holms (BBC): não se deixem
manipular pelo malandro, a dar um tom mais "soft" e por isso mais
"aceitável" à sua condição de psicopata (ou pelo menos, tendências
psicopáticas), o que pode também ser interpretado como arrogância, e por
isso intimidativo, em certos contextos. “High functioning sociopath”
é uma designação com pouco préstimo em termos de diferenciação - a parte do
"sociopath", pois é usado também para descrever dois outros grupos de
indivíduos anti-sociais, e não só o psicopata secundário. Apesar do
“sociopata” ser visto pelo público (e uma pesquisa rápida online evidencia-o)
como um paciente com uma forma menos grave de psicopatia, nenhum dos grupos ou
o subtipo de psicopatia que pode designar se traduz num impacto social menos
grave do que o subtipo primário – até podem ser piores. Não há razão para "sociopata" ser mais aceitável do que "psicopata", pelo menos em termos de comportamento e impacto. "High
functioning", se quiser apenas dizer inteligente e por isso bem sucedido,
está obviamente correcto e diferencia-o do tipo de caso mais
exposto ao público, portanto seria uma observação pertinente. Nem todos os
psicopatas são bem sucedidos, alguns acabam presos ou mortos pela polícia ou
sistema de justiça. Uma interpretação alternativa é que ele se apresenta como um "sociopata" (ou um psicopata secundário, neste caso) e reage forçadamente como um por achar que isso o livra de qualquer fraqueza (ou pseudo-fraqueza) que ele tenha.
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