sábado, 16 de agosto de 2014

Empatia, perspectiva evolutiva, e o défice empático dos criacionistas

Empatia é a capacidade de partilhar ou reconhecer as emoções dos outros, e desempenha um papel fundamental na capacidade para sentir compaixão, e é também importante distinguir que ter pena não é o mesmo que sentir empatia. Várias regiões do cérebro estão relacionadas com esta capacidade, três delas são a amígdala, o putamen e a ínsula (1,2). 
Numa perspectiva evolutiva, a empatia é importante porque proporciona a habilidade de perceber os sinais emocionais noutros e, neste sentido, ter empatia relativamente à dor dos outros também pode ter importância adaptativa (2), o que inclui a empatia emocional, bastante primitiva, a qual seria útil, por exemplo, para perceber se algo constituía um perigo, por exemplo, um alimento (11) - a psicologia evolutiva é ainda uma ciência em embrião, pois parece-me que ainda se fica por identificar características com possível valor adaptativo (de acordo coma as observações) e especular com evidências ou dados insuficientes, mas as ideias-base são fundamentadas no conhecimento científico já estabelecido, e por isso tem potencial. Chegando a este ponto, é importante distinguir entre empatia cognitiva e afectiva ou emocional: empatia cognitiva é a capacidade de compreender a perspectiva dos outros e o seu estado psicológico (adoptar a perspectiva do outro, tendência para se identificar com personagens de ficção) e empatia emocional é a capacidade de ter uma resposta emocional adequada perante o estado psicológico dos outros (compaixão pelos outros, como resposta ao seu sofrimento, sentimentos de desconforto do próprio em resposta ao sofrimento de outros que poderá ter a ver com o desenvolvimento) (3). Um fenómeno que poderá estar relacionado é quando as crianças "captam" as emoções dos outros quando os vêem chorar (normalmente em funerais). No entanto, chorar em funerais também pode não ter nada a ver com empatia, nem com tristeza exclusivamente por certa pessoa ter morrido. Quando eu tinha 7 ou 8 anos, fiquei stressada (o que acabou em choro) num funeral, mas não pela morte da pessoa em si (eu nem a conhecia pessoalmente), e penso que também não captei dos outros (não havia quase ninguém a chorar). As pessoas à minha volta falavam na morte "aparecer" de repente, era isso que eu estava a ver, e a morte era a pior coisa para mim (na altura), eu não queria morrer, e depois pus-me a imaginar quando seriam os meus pais ou eu. Mas foi passageiro, passados poucos minutos acalmei de vez. Depois disso, já adolescente, bem como adulta, fico perfeitamente calma (e nada triste) quando me falam de mortes ou vou a funerais, mesmo quando morrem membros da minha família com quem me relaciono, e nem vendo, por exemplo, os meus primos a chorar por isso eu me sinto mal. 
Existem testes que medem os dois tipos de empatia e discriminam as suas respectivas componentes, mas os questionários podem ser baseados em respostas a situações da vida real que podem não ter a ver com empatia. Eu, por exemplo, por curiosidade fiz um teste de empatia online exactamente assim. No meu caso, deu-me tudo (excepto a capacidade de adoptar perspectivas, se não estou em erro) abaixo da média em mulheres, embora o que tivesse a ver com empatia cognitiva e "personal distress", que se referia à capacidade do próprio de se sentir emocionalmente incomodado com o sofrimento dos outro estivesse mais próximo da média do que a parte dos sentimentos de compaixão. Mas a parte do incómodo emocional estava, na minha opinião, muito mal justificada. Neste teste, relacionaram isso com a resposta a emergências e situações emocionais, mas na parte das emergências, por exemplo, eu já fiquei moderadamente stressada por não saber o que fazer para me desenvencilhar da situação (uma certa desorientação de curta duração) ou por ficar frustrada (e até chateada) com a resposta por parte de outros, não por causa do sofrimento deles (aconteceu numa emergência psiquiátrica). Mas outras vezes em que nada disso se proporcionou, eu calmamente telefonei ao 112, sem qualquer desconforto psicológico. Portanto, nessa resposta, querendo ser sincera, eu não podia afirmar que ficar ansiosa não se aplicava a mim. Também não se aplica de um modo geral, mas pode acontecer, só que, normalmente, não por causa do sofrimento de outros. Provavelmente é por isso que se recomenda uma consulta com um profissional para fazer esses testes, em que se pode falar com o psicólogo ou psiquiatra que nos está a acompanhar. 
Em termos clínicos estudos têm revelado que o défice de empatia está associado a transtornos do espectro autista (embora em alguns casos, o problema esteja apenas na empatia cognitiva), incluindo síndrome de Asperger (em que estudos revelam défice de empatia cognitiva e, em alguns casos, também um défice de empatia emocional (4,5)), assim como a vários transtornos de personalidade: esquizotípico, esquizóide, obsessivo-compulsivo, possivelmente a pelo menos alguns subtipos de transtorno paranóide, um subtipo de transtorno melancólico (com componentes de narcisismo) e um subtipo de transtorno negativista (com componentes de sadismo), sádico (em vez de se sentirem incomodados, sentem-se psicologicamente recompensados (13)), narcisista, psicopatia/ sociopatia (TPAS) - empatia emocional diminuída em todos, incluindo, provavelmente, em pelo menos alguns subtipos de esquizotípicos, e em pacientes esquizoides, relativamente à compaixão/preocupação com os outros. No caso de pacientes esquizotípicos, na componente do incómodo psicológico (emocional) mostraram-se mais sensíveis num estudo realizado em estudantes universitários (6,7,8,15, 16, 18). No caso dos pacientes com psicopatia e narcisismo (mas não no mesmo extremo), as emoções são superficiais, as relações amorosas transitórias e não sentem a separação e a perda quando a relação termina com a intensidade de um indivíduo dito "normal". Os psicopatas têm défice emocional, nos casos mais graves elevado ao extremo. Um estudo sugere que os criminosos violentos psicopatas são mais sádicos do que os não-psicopatas (14). No caso de pacientes com borderline, o problema reside na empatia cognitiva, no entanto, perdidos nos seus próprios tornados emocionais, acabam por não se servir das suas capacidades empáticas naturais, e, quando sob pressão, a sua instabilidade psicológica pode levar a que, na opinião de profissionais que trabalharam com estes pacientes, se transformem temporariamente em autênticos psicopatas (9) (actualização: em pacientes com transtorno bipolar acontece algo de semelhante na fase maníaca, que pode levar a que seja confundido com narcisismo patológico(17)). Mais do que um destes transtornos de personalidade pode coexistir na mesma pessoa, ou um paciente com um transtorno de personalidade apresentar algumas características de outro transtorno de personalidade (ex.: psicopatia e narcisismo; Narcisista com características antisociais (psicopáticas); Esquizoide com características/tendências psicopáticas). Por vezes ouço dizer que um psicopata tem défice moral, o que poderá não estar de todo errado. Quando se chega ao ponto de sentir a dor emocional dos outros, isso pode despoletar sentimentos de culpa, injustiça e até de raiva, o que aponta para que a capacidade de sentir empatia para com os outros esteja na base do comportamento moral (10), isso e a necessidade de viver numa sociedade onde todos se roubam e matam um aos outros, que acaba por não beneficiar ninguém. Os criacionistas (mais ainda do que outros religiosos) não conseguem ver como pode existir moral sem deus e acham que para justificar a existência de normas morais universais é preciso acreditar em deus. Mas isso está errado. Basta ver a necessidade de as ter e reconhecer uma possível origem evolutiva. E não há normas nem nada definido universalmente. Não são precisos sequer ensinamentos religiosos (embora possam ajudar) para não destruirmos a vida do vizinho do lado e participarmos em acções de entreajuda - para isso basta empatia - ou mesmo o simples facto de não se querer arranjar problemas, e a vontade de se integrar. Pergunto-me se eles (além de não perceberem nada do assunto) não terão também um défice de empatia, sobretudo emocional (neste aspecto não me posso gabar, só dizer que não é necessariamente um defeito).  
Agora, uma curiosidade clínica: em ambiente controlado, até psicopatas criminosos sentiram empatia (emocional) quando os orientaram para tentar imaginar como seria ser aquela pessoa (que estava a sofrer) nas imagens que eles viam, o que pode abrir caminho para a reabilitação (11,12). 

Referências: 

1. 
J Child Psychol Psychiatry. Aug 2013; 54(8): 900–910., Mar 12, 2013. doi: 10.1111/jcpp.12063, "Empathic responsiveness in amygdala and anterior cingulate cortex in youths with psychopathic traits", Abigail A. MarshElizabeth C. FingerKatherine A. FowlerChristopher J. Adalio,4 Ilana T.N. Jurkowitz,5 Julia C. SchechterDaniel S. PineJean Decety, and R. J. R. Blair
( disponível em: http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/23488588)

2. "Empathy in mice: role of amigdala, Ínsula and anterior cingulate cortex in the modulation of nociceptive responses", Azair Liane Matos do Canto de Souza (disponível em: http://www.bv.fapesp.br/en/bolsas/140803/empathy-in-mice-role-of-amigdala-insula-and-anterior-cingulate-cortex-in-the-modulation-of-nocicepti/)

3. Rogers K, Dziobek I, Hassenstab J, Wolf OT, Convit A (Apr 2007). "Who cares? Revisiting empathy in Asperger syndrome". J Autism Dev Disord 37 (4): 709–15. doi:10.1007/s10803-006-0197-8. PMID 16906462.


4. Neurocase: The Neural Basis of Cognition, Volume 8, Issue 3, 2002 - Empathy Deficits in Asperger Syndrome: a Cognitive Profile (Abstract) (disponível em: http://www.tandfonline.com/doi/citedby/10.1093/neucas/8.3.245#tabModule)   

5. Rogers K, Dziobek I, Hassenstab J, Wolf OT, Convit A (Apr 2007). "Who cares? Revisiting empathy in Asperger syndrome". J Autism Dev Disord 37 (4): 709–15. doi:10.1007/s10803-006-0197-8. PMID 16906462.

6. Differences in Empathy Between High and Low Schizotypal College Students, Spencer McCauley, 4-1-2013, Trinity College Digital Repository   

7. Hare, R. D. (1991). The Hare Psychopathy Checklist-Revised. Toronto: Multi Health Systems.

8. "Lack of empathy in patients with narcissistic personality disorder", K. Ritter et al., Psychiatry Research 187 (2011) 241–247 (disponível em: http://www.sakkyndig.com/psykologi/artvit/ritter2011.pdf)



9. "The Borderline Personality as Transient Sociopath", Steve Becker, March 27, 2008 (disponível em: http://www.lovefraud.com/2008/03/27/the-borderline-personality-as-transient-sociopath/)

10. Hoffman, Martin L. (1990). "Empathy and justice motivation". Motivation and Emotion 14 (2): 151.doi:10.1007/BF00991641


11. “Both of Us Disgusted in My Insula”: Mirror Neuron Theory and Emotional Empathy, Ruth Leys (Johns Hopkins University), March 18, 2012 (disponível em: http://nonsite.org/article/%E2%80%9Cboth-of-us-disgusted-in-my-insula%E2%80%9D-mirror-neuron-theory-and-emotional-empathy)  

12. "Psychopathic criminals have empathy switch", Melissa Hogenboom, BBC News, 25 July 2013 (disponível em: http://www.bbc.com/news/science-environment-23431793)   


13. Decety, J., Michalska, K. J., Akitsuki, Y., & Lahey, B. B. (2009). Atypical empathic responses in adolescents with aggressive conduct disorder: A functional MRI investigation. Biological Psychology, 80, 203-211.

14. Sadism and psychopathy in violent and sexually violent offenders, S. E. Holt, J. R. Meloy, S. Strack, J Am Acad Psychiatry Law. 1999; 27(1): 23–32. (resumo disponível em: http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/10212024)

15. Millon, Theodore, "Personality Subtypes" (Institute for advanced studies in personology and psychopathology - disponível em: http://millon.net/taxonomy/summary.htm)

16. Eur Arch Psychiatry Clin Neurosci. 2013 Sep 11, "Fluid intelligence and empathy in association with personality disorder trait-scores: exploring the link", Hengartner MP, Ajdacic-Gross V, Rodgers S, Müller M, Haker H, Rössler W (disponível em: http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/24022591)  

17. Stormberg, D., Roningstam, E., Gunderson, J., & Tohen, M. (1998) Pathological Narcissism in Bipolar Disorder Patients. Journal of Personality Disorders, 12, 179-185 (disponível aqui: http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/?term=Pathological+Narcissism+in+Bipolar+Disorder+Patients.+Journal+of+Personality+Disorders)

18. "Does Obsessive-Compulsive Personality Disorder Belong Within the Obsessive-Compulsive Spectrum?", Naomi A. Fineberg et al, CNS Spectr. 2007;12(6):467-474,477-482 (disponível em: http://www.cnsspectrums.com/aspx/articledetail.aspx?articleid=1091)

Actualização - Nota: Um teste de empatia que melhor indica os níveis de empatia emocional, nomeadamente no que se relaciona com o incómodo emocional (que eu também experimentei, e confirmou as minhas suspeitas de que o nível que me deu o outro teste estava aumentado) é indicado na referência 6.





  

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