segunda-feira, 14 de março de 2016

Lei da Palmada no Brasil: Existe de facto uma lei merecedora do nome?

Há uns tempos atrás surgiu uma polémica a respeito de uma lei que foi proposta no Brasil que procurava banir qualquer tipo de punição corporal - sim, até mesmo as inofensivas "sacudidelas de pó" (palmadas) - totalmente legal em vários países europeus desenvolvidos, bem como em vários estados dos E.U.A (1). 
Se o leitor tem vindo a acompanhar a minha actividade online, deve já ter reparado que eu acho um exagero que hajam leis contra dar uma palmada ou mesmo um par delas nos filhos quando estes se portam mal, especialmente leis punitivas. Na altura pensei apenas isso mesmo: "Mas que exagero! Espero que não passe". Mas passou. No entanto, não sem ocorrerem alterações: a expressão "castigo corporal" mudou para "castigo físico", que no sentido jurídico (no Brasil, pelo menos) tem um significado um tanto diferente do que tem na linguagem corrente: neste caso tem que causar lesão (2). Ora, enquanto que eu não posso ter a certeza do que constitui lesão em termos legais no Brasil (tal como aconteceu com a expressão castigo físico, pode ter um significado um tanto diferente do que tem em linguagem corrente), seria difícil de defender que um palmada ou duas seguidas causem lesão, mesmo que esta seja apenas considerada como causar dor - ora experimentem lá dar uma palmada em vocês mesmos por cima de umas calças de ganga ou mesmo de fato de treino comuns. Além disso, e talvez ainda mais importante, é difícil dizer que esta lei proíbe seja o que for - para já isso não está escrito em lado nenhum, e não é uma lei punitiva, mas sim educacional (3), apenas para dizer que o castigo físico não deve ser visto como uma boa opção - não, os pais não vão para a prisão, quanto muito poderiam ter algum tipo de acompanhamento profissional. 
Portanto, será que os pais continuam a poder disciplinar os filhos recorrendo a castigos corporais? Podem. Está mais que claro que podem. Será que eles devem? A lei não é clara, pois mais uma vez, aqui refere-se a castigo físico e não castigo corporal.  

Mas, leis brasileiras à parte, será que se deve utilizar o castigo corporal como a palmada?

Pelo que eu sei, e eu sou estudante de psicologia na universidade, na minha opinião pode-se dizer no sentido mais lato que há consenso entre os peritos (psiquiatras, psicólogos e outros investigadores da área da saúde mental). Isto é, se eu tivesse que responder sim ou não, eu responderia que sim, no sentido em que se pode e talvez se deva em alguns casos. Por alguma razão o DSM-5 não inclui as palmadas sem consequências para a integridade física como sendo consideradas actos abusivos (4), e a mais lógica é que as pessoas que trabalham na sua actualização, analisando vários estudos acharam os seus efeitos de um modo geral mínimo. É verdade que certos estudos demonstram que castigos corporais frequentes estão associados com o aparecimento de problemas mentais teias como a depressão na idade adulta e neste aspecto, segundo a OMS isso seria passível de ser considerado abusivo, se encarássemos isso como um efeito causal, uma vez que tem uma má influência no desenvolvimento da criança (5). No entanto, apenas alguns estudos longitudinais que preenchem vários requisitos mínimos é que podem estabelecer causalidade com uma grande margem de erro (6). Eu não me consigo lembrar de tudo a respeito do estudo que li, pois já lá vão anos desde que o li. Encontrei uma revisão da literatura (7) que aponta para o que me parece ser um consenso: apenas castigos frequentes e severos estão associados com mau desenvolvimento mental da criança - portanto, se de facto há algum efeito causal, é aqui que reside a explicação e não no simples uso de disciplina física. Mas parece haver um estudo que dizem desafiar esse consenso: um estudo que revela que até baixos níveis de castigos físicos parecem ter impacto no desenvolvimento mental da criança, estando associado com comportamento antissocial. No entanto, isto é um estudo de associação, embora algumas variáveis tenham sido controladas (7), isso não chega para estabelecer causalidade (como eu disse, só alguns estudo longitudinais que preenchem critérios específicos é que podem estabelecer uma relação de causalidade com uma grande margem de erro), e muito menos que esse é principal determinante, especialmente quando é conhecido que é frequentemente observável que por cada 60 ou 70 vezes que os putos ouvem "Olhas que levas", apanham 2 ou 3 vezes. Portanto, há uma forte possibilidade de não ser a prática em si, mas a maneira como é feita - nisto, até pessoas que defendem que é um tipo de castigo que não deve ser posto em prática terão que concordar comigo (8) - , e certos cientistas sociais defendem que os efeitos da mesma dependem da maneira como é encarada - como uma imposição de limite ou como agressão (9). Então, voltando aos estudos sobre a frequência do uso da disciplina física, será que nos casos de uso mais frequente havia maior tendência para ser percebido como agressão?
Parece-me haver, então, uma tendência nos estudos e nas opiniões para apontar como factores associados a problemas de desenvolvimento mental apenas os castigos frequentes e/ou severos, e certamente que não se referem a dar mas palmadinhas no traseiro de vez em quando. 
Quanto à eficácia deste tipo de castigo, só funciona em situações limitadas, por isso, na minha opinião, não é de facto a melhor opção e por isso só deve ser usada como último recurso e dentro do que é considerado inofensivo para a integridade física. 

Adenda: a palavra sofrimento foi também incluída como castigo físico, no entanto, isso torna a interpretação da lei ainda mais subjectiva, pois pode ser defendido que uma palmada ou duas podem não causar sofrimento (ver 2º parágrafo), pelo que não muda muito a conclusão deste post, especialmente (mas não apenas) porque não é uma lei punitiva, por isso, dificilmente bane ou proíbe seja o que for.

Links para as referências: 

1. Corporal punishment in the home - wikipedia

2. Projeto de lei que proíbe pais de bater em filhos é aprovado

3. PL 7672/2010 

8. Treta da Semana: Arreia-lhe enquanto não cresce

Bibliografia:

4. American Psychiatric Association. (2013). Diagnostic and statistical manual of mental disorders (5th ed.). Washington, DC: Autor.  

5. Butchart, A & Harvey, A. P. (2006). Preventing Child Maltreatment: A Guide to Taking Action and Generating Evidence. Acedido em Fevereiro 8, 2016, em http://apps.who.int/iris/bitstream/10665/43499/1/9241594365_eng.pdf 

6. Schuck, AM, Widom, CS (2001). Childhood victimization and alcohol symptoms in females: Causal inferences and hypothesized mediators. Child Abuse & Neglect, 25(8),1069–1092. Acedido em http://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0145213401002575

7. Smith, A. B. (2006). The State of Research on the Effects of Physical Punishment. Social Policy Journal of New Zealand, 27. Acedido em: https://www.msd.govt.nz/about-msd-and-our-work/publications-resources/journals-and-magazines/social-policy-journal/spj27/the-state-of-research-on-effects-of-physical-punishment-27-pages114-127.html 


9. Gunnoe, M. L., Mariner, C. L. (1997). Toward a Developmental-Contextual Model of the Effects of Parental Spanking on Children's Aggression. Archives of Pediatrics and Adolescent Medicine, 151(8), 768-775. Acedido em http://archpedi.jamanetwork.com/article.aspx?articleid=518459. doi:10.1001/archpedi.1997.02170450018003  

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